Um dos artistas plásticos que mais tem trabalhado em sua geração, utilizando-se de múltiplas linguagens e suportes, Thiago Cóstackz voltou a realizar em junho de 2017 uma exposição individual em São Paulo. Depois de seu último projeto de grande fôlego e extensão, “S.O.S Terra – Expedição artístico-científica a 10 lugares ameaçados do planeta” (2014), Cóstackz criou a exposição multimídia “O pássaro de fogo”, reunindo 40 obras, entre pinturas, esculturas, fotografias de body art, performances, registros de intervenções urbanas de grandes dimensões e música.

O pássaro de fogo” é uma lenda que, com muitas variações, está presente em diversos povos e culturas, dos gregos, vikings, eslavos até os nordestinos e índios Yanomamis, no Brasil. Cóstackz apropria-se deste universo mitológico para criar as obras que se conectam à relação entre homens e pássaros ao longo do tempo, do ancestral sonho de voar à extinção de inúmeras espécies nos últimos séculos, passando pela relação com as cidades e chegando a paralelos com a colonização espacial.

A Estrada Selvagem 

No princípio foi um sonho. E, como indicam as pesquisas de Carl Jung e os textos de Joseph Campbell, nossa imaginação, nossas curiosidades profundas e a mãe de nossos sonhos são a mistura de mitos tão antigos, não raro desconhecidos, que quando somos colocados diante dos ciclopes, dos corvos de Odin e das cosmogonias que nem sequer conhecemos somos colocados diante do espelho. Às vezes o que vemos nos causa encanto, às vezes medo. Então, faça como Magenta, de The Rocky Horror Picture Show, e clame: “Oh, fantasia, me liberte”, se tiver coragem.

Eis O Pássaro de Fogo, de Thiago Cóstackz, um dos artistas contemporâneos mais imaginativos, inquietos, engajados e provocativos do momento. Camaleônico como David Bowie e irônico como ABBA, B-52’s e Rita Lee. Aqui ele recria e expande as variáveis mágicas do mito do pássaro fogo e o expõe, pulsante e vivo diante dos seus olhos, te convidando a embarcar no neon de suas asas. Suas infinitas possibilidades habitam as paredes desta exposição multimídia, desde as mitológicas (sejam embebidas no xamanismo siberiano – fonte das culturas nativo-americanas, presentes aqui também – sejam nos deuses e símbolos imemoriais), passando pelo espantoso balé de Igor Stravinsky, até espaçonaves vivas que fariam Isaac Asimov e Carl Sagan vibrarem uníssonos. E o que o Pássaro de Fogo aqui pede de você? Que plugue sua verdade mais íntima e individual em alguma das suas penas douradas.

Thiago Cóstackz, a cada novo projeto, impressiona pelo número de suportes de que se utiliza. Aqui não é diferente. O Pássaro de Fogo é o seu trabalho que mais se aproxima da ideia de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk) ao escrever letras que cria para o duo formado por ele e o músico islandês Hjörvar Hjörleifsson, com quem compôs as músicas – e criar clipe para completar a exposição multimídia. As pinturas e body arts de Cóstackz constroem narrativas psicodélicas, surreais, críticas e vibrantes. Suas esculturas dão prosseguimento à técnica de Lucca e Andrea Della Robbia subvertendo-a ao aproxima-la dos velhos totens tribais, de elementos da natureza, de símbolos incorporados à cultura de massa e de novas figuras exóticas próximas à ficção científica. As músicas convocam à ação e criam imagens, desafiam quem lê suas letras e se permite ser seduzido pelo seu som. Os clipes roteirizados, dirigidos e interpretados pelo próprio Thiago Cóstackz, unem sua experiência como artista plástico e ambientalista ao universo mitológico imemorial que aprendeu com seus antepassados e que eles aprenderam com os antepassados deles desde suas origens ameríndias, eurasianas e africanas. O livro, enfim, une poesias ricas em imagens a fotos cuja sequência cria uma coesão narrativa. O Pássaro de Fogo é sua exposição mais pessoal. O artista está aqui pleno.

Por ser um artista multimídia e conceitual, Cóstackz não fica preso a um só suporte. São os conceitos e filosofias que o fazem escolher a estrutura. Um exemplo são seus body arts, nos quais se vale do próprio corpo como matéria prima, como acessório da Arte, e não como algo a se esconder. O corpo nos body arts de Cóstackz é instrumento para romper os conservadorismos de forma, de conteúdo e principalmente de costumes. A exposição O Pássaro de Fogo é multifacetada como o pássaro no body art Black Dancing. Cada um de seus suportes é realizado valendo-se das tecnologias de materiais mais recentes e ecologicamente conscientes associadas a releituras de técnicas artísticas, como a estética da Renascença, e tem sua construção conceitual imersa no Humanismo. O resultado é um trabalho atento aos grandes temas, sarcástico, denso e profundo, ora a serviço do macabro, ora da beleza. Não por acaso Thiago Cóstackz sempre menciona aquela a quem Platão chama de décima musa, Safo de Lesbos, e uma de suas frases mais célebres: “à beleza servi e não conheço nada maior”.

Cada personagem, planta, OVNI, ovo, o prédio de cada uma de suas cidades passa alguma mensagem e cumpre papel estético e narrativo em que o Belo é redefinido e reencontrado em afronta àqueles que se contrapõem à vida, ao novo, à elevação da evolução. Cóstáckz reafirma com seu trabalho o fato de que a arte pop envolve reflexão constante. Todos os pássaros de fogo, dos discos voadores às aves mitológicas saem juntos de seus esconderijos estrelados, ora cúmplices, ora inimigos, todos fundidos em um grande voo a partir do ovo.

Outra característica da arte pop é que, não importando em qual linguagem ou mídia, não faz reverências às vacas sagradas, nem se obriga a renega-las. Bebe de suas tetas e transubstancia seu leite em algo inesperado. Cóstackz brinca com o divino reconstruindo ícones do passado, não cede aos símbolos imagéticos tradicionais, nem se presta a qualquer compromisso com o banal. Ele elabora um todo exclusivo que parte de sua mitologia pessoal e de suas referências. Além das histórias ancestrais que ouviu, sua arte é influenciada por suas pesquisas no campo das ciências, em especial da astrofísica e exobiologia. Como artista também se ocupa de  pesquisa constante e profunda de materiais, desde lojas do Covent Garden, em Londres, às caçambas de lixo do Brás.

Com sua obra, e nesta exposição em especial, ele dá aos vasos sacrificiais uma conexão em alta velocidade com os signos de comunicação imediata sem tropeçar no óbvio. Bebe no enfrentamento do rock, nos questionamentos humanistas, na criticidade da literatura de autores como Franz Kafka, na confusão calculada de Bosch e de Bruegel, celebra o dourado de Gustave Klimt. Transforma antigos mitos e ícones, somados a novas percepções, em um carteado pictórico que atrai a curiosidade própria das histórias contadas em torno das fogueiras – origem de todos nós que sonhamos.

Thiago Cóstackz une em seus quadros e em seus body arts técnicas de pintura, colagem e narrativa visual, revisa a perspectiva tonal, desafia a lógica tanto quanto possível e constrói imagens com precisão matemática a ponto de muitas de suas pinturas poderem ser divididas ao meio, tendo-se, assim, duas peças completas, harmônicas, semelhantes, quando não iguais. Cóstackz se coloca o tempo todo em desafio na busca da simetria matemática de forma quase obsessiva. Isso é resultado de anos de estudo, experimentação e do espírito desbravador que nos faz avançar a todos. Cada linha, cada repetição de camada é estudado em favor da estética aliada ao conceito, sem didatismos desnecessários ou academicismos herméticos.

Suas cidades são parte do meio ambiente e não à parte dele. Os eventos inseridos nelas une espanto e encanto. O espaço campal, seja nos quadros, fotos ou clipes, aprofunda todo o mistério soberano da natureza nativa que inspiram as verdades xamânicas, mães unificadoras de todos os povos da terra, e carregam aqueles que se permitem se colocar em contato com esse ambiente. Cóstackz glorifica o inusitado com êxito e lhe enche de conteúdo.

Assim como Roy Lichtenstein deu, com a qualidade de seu trabalho associada às possibilidades da cultura pop de seu tempo, à estética das histórias em quadrinhos a força digna das exposições de arte, Thiago Cóstackz dá um novo passo no universo gráfico próximo a nomes como o de Moebius e adiciona a perspectiva das artes plásticas às grandes causas, ao pop e aos arquétipos ancestrais que reverberam hoje. Cada peça sua é como uma das vacas profanas cantadas por Gal Costa pondo seus cornos pra fora e acima da manada. Algo próprio de quem, como diz a música, respeita muito suas lágrimas e mais ainda sua risada. É arte pulsando vívida diante de seus olhos.

Desde que se tem registro das artes plásticas e da narrativas, é percebido que quanto mais ampla a cosmovisão do artista e sua capacidade de unir elementos que a compõem, mais surpreendente é o resultado (no tempo de sua criação e para as gerações seguintes). Das pinturas rupestres às Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, amplitude e fusão, juntos, rendem os melhores resultados criativos. Tem-se, ao menos, dois exemplos disso nesta exposição multimídia.

Primeiro, o olhar sobre diversas culturas, a começar pelas indígenas. Ao transformar o universo indígena em totens e esculturas de porcelana, ele encontrou um caminho de sofisticação para a sobrevivência de culturas que somem diante dos olhos. A cultura indígena aqui não é abordada de modo apartado, mas unida ao todo. O universo indigenista tem uma riqueza arquetípica e um glamour ainda pouco utilizada no Brasil. A exposição O Pássaro de Fogo ajuda a diminuir essa lacuna e mostra suas ligações com outros universos, a exemplo do nórdico e dos povos primitivos da Sibéria. Ele atinge isso pela sensibilidade de perceber que nós estamos nos mitos e os mitos estão em cada um de nós. O Brasil é um dos raros lugares que conseguem unir muitas realidades arquetípicas em um só indivíduo. Isso pode ser visto aqui. Raramente, porém, as mitologias indígenas são contempladas nos livros e exposições brasileiras. Essa ausência não ocorre no O Pássaro de Fogo, muito ao contrário.

No princípio foi um sonho. Um sonho com dois pássaros mortos em batalha que deu vida a um universo criativo tão novo e avançado quanto ancestral que, a despeito da imensidão de referências, nunca vai para trás, sempre adiante, que não se conforma com a realidade estabelecida nem com o conforto dos próprio êxitos pessoais do passado. Ele se vale de um dos fundamentos existenciais mais preciosos da arte: provocar, instigar.

Texto curatorial: Anttonio Amedo